A dor silenciosa em “Promising Young Woman”

Cinema, Escritos

Eu escrevi este texto há dois anos, em maio de 2021, e o publiquei no Medium. Resolvi trazê-lo para cá pela importância da discussão que o filme “Promising Young Woman” traz, além disso, vou publicar textos meus vez ou outra por aqui.

(O texto a seguir não tem spoilers.)

Você está cursando medicina ao lado de sua melhor amiga, sua grande companheira desde a infância. Ela é brilhante, tem um longo caminho pela frente. Você é inteligente e ótima aluna, também terá um futuro promissor. Em uma festa da faculdade, sua amiga é levada embriagada para um quarto e estuprada por um colega de turma diante de uma horda de outros estudantes, aos gritos de incentivo e risos de satisfação. Esse acontecimento põe um fim ao futuro de sua amiga. O que você faz?


No filme “Promising Young Woman”, vemos Cassie sete anos depois da violência sofrida por Nina, sua amiga. O que aconteceu com Nina? Não sabemos, só podemos supor. O que aconteceu com Cassie? Ela abandonou a faculdade, mora com os pais, trabalha em uma cafeteria e se recusa a ter qualquer relacionamento amoroso. Toda semana, religiosamente, ela vai a um bar, finge-se de bêbada e espera algum homem vir ao seu encontro. Sempre a desculpa de ajudá-la, sempre o desfecho de tentativa de abuso. Não falha.

Cena do filme “Promising Young Woman”. Foto: Divulgação.


Todas as análises que eu li o classificam como um filme de vingança. Não só, Emerald Fennell, a diretora e roteirista do filme, o classifica dessa maneira. Se ela diz, quem sou eu para contestar. Talvez o final o coloque nessa turma, mas eu o vejo de outra forma. Para mim, há dois pontos principais: a dor silenciosa de Cassie e a sua saga em provar que Nina não teve culpa.

Cassie é vista como a adulta fracassada que “não deu certo” na vida. Consumida pela dor, ela não aceita o desfecho dos acontecimentos. Por que Nina teve sua vida interrompida enquanto a vida das demais pessoas envolvidas seguiu adiante? Esse não é um questionamento apenas do filme, mas da nossa sociedade: os rapazes seguem em frente, os homens promissores com um belo futuro pela frente. Olhe em volta, o mundo lhes concede o benefício da dúvida. As moças que juntem os cacos de sua própria negligência: quem mandou não se preocupar com a própria segurança?

Houve quem questionasse a escolha de Carey Mulligan para o papel principal porque ela não se encaixa no perfil de femme fatale, como ela poderia seduzir os homens? Veja bem, ela finge estar bêbada, ela se coloca em um estado de vulnerabilidade, os homens abusam dela. Isso é sedução? Não. Deveria haver alguma dúvida a esse respeito? Também não. As vítimas de violência somos nós, o tempo todo.

Cena do filme “Promising Young Woman”. Foto: Divulgação.


O alvo de Cassie não é apenas homens comuns à noite no bar, mas as pessoas envolvidas nos acontecimentos do passado. Ela se vinga? Para mim, ela caminha no limite entre “vou me vingar” e “viu como as coisas mudam quando é com você?”. Nada acontece de fato e quem assistiu entende o que estou dizendo.

Em um dado momento, temos o relacionamento amoroso entre Cassie e Ryan, um antigo colega de faculdade. Bacana, divertido, apaixonado, espirituoso, será possível existir um relacionamento saudável? Onde o passado se encaixa no presente? O relacionamento é um ponto de virada da história e cada qual tire as suas conclusões.

O final divide opiniões e trouxe algumas discussões acaloradas a seu respeito.

“Isso é culpa sua.”


A minha opinião: do ponto de vista cinematográfico, é um bom final, ele se encaixa perfeitamente à história. Por outro lado, ele me incomoda. Assisti ao filme duas vezes e o incômodo só aumentou. Precisava ser daquela maneira? Talvez precisasse, mas eu não queria. Não quero mais ver isso, nem nos filmes, nem na vida.

Cassie conseguiu provar o seu ponto: Nina não teve culpa. Nós mulheres não temos culpa. Compreender isso não é apenas entender “Promising Young Woman”, mas como a sociedade funciona. Quem sabe assim saímos desse ciclo de violência que não nos permite existir como merecemos.

Escola Base: um repórter enfrenta o passado

Cinema, Sociedade

O ano era 1994 e quatro pessoas foram acusadas de abuso sexual de crianças, em uma escola infantil de São Paulo. A primeira reportagem sobre o caso foi realizada pelo repórter Valmir Salaro e exibida no Jornal Nacional. Logo o assunto tomou grandes proporções na imprensa. Mais duas pessoas foram acusadas e presas. O caso tomou conta do país. O porém: todos eram inocentes.

Considerado o maior erro do jornalismo brasileiro, o caso Escola Base é conhecido por todos os estudantes de jornalismo e jornalistas do país desde então. Mas há quem se lembre dele porque o acompanhou na época. Eu sou uma delas.

O documentário “Escola Base: um repórter enfrenta o passado” mostra o caminho percorrido por Valmir Salaro para se redimir da culpa que carrega. Ele relembra os fatos, reencontra algumas das pessoas acusadas injustamente, assume os próprios erros e aceita as críticas que lhe foram feitas, sem rebater. É de uma dignidade impressionante, além de ser admirável.

O erro não foi apenas dele. O erro não começou com ele. Mas, até onde sabemos, ele foi o único que reconheceu o próprio erro e assumiu a responsabilidade. É complicado ver colegas de profissão buscando justificativas para as escolhas que fizeram. Uma amostra de que, talvez, uma parte do jornalismo profissional não tenha aprendido com o caso como deveria.

No fim das contas, se o objetivo do documentário era questionar o que não deve ser feito no jornalismo, acabou mostrando como deve ser um jornalista. Valmir Salaro deu uma grande aula, não apenas para seus pares, mas para todos nós.

O documentário está disponível no Globoplay.

Endangered

Cinema

O trabalho de quatro jornalistas ao longo de um ano (sendo uma brasileira, a Patricia Campos Mello) e as perseguições sofridas pela imprensa: esse é o tema do documentário Endangered (2022).

Eu acompanho esse assunto há um tempo, mas assistir aos acontecimentos é outra coisa, temos uma clareza maior da gravidade da situação. Chega a ser assustador.

O documentário está disponível na HBO Max sob o título Em perigo (2022). Vale a pena assistir.

Em perigo (2022), trailer legendado.
O trailer original, aqui.

Miopia, preconceito, falta de curiosidade: os vícios da Academia

Cinema

Se alguém me perguntar há quanto tempo eu assisto a filmes e acompanho cinema, não saberei precisar. Mas lembro de mim pequenina, em frente à televisão, assistindo a O mágico de Oz e absolutamente fascinada: talvez o amor tenha surgido aí.

Em relação ao Oscar, acompanho desde a adolescência. Assisto à cerimônia ao vivo até o fim e todo ano falo para mim mesma: vou desistir, cansei. No dia e hora marcados, lá estou eu.

Por fim, por um bom tempo da minha vida eu li críticas de cinema. Até curso eu fiz, onze anos atrás, com um renomado crítico e senti que perdi dinheiro (o crítico em questão entende muito do assunto, mas a sua soberba suplanta qualquer conhecimento). Aí vieram os canais de resenha na internet e aquela maneira adolescente de falar, aliada ao conhecimento raso, não era para mim. Até o dia em que encontrei o canal da Isabela Boscov. Eu a conhecia dos tempos de revista Veja, mas raramente a lia. Que maravilha os seus vídeos, um melhor que o outro.

Reunindo cinema, Oscar e crítica, vim compartilhar este excelente vídeo da Isabela Boscov, “Miopia, preconceito, falta de curiosidade: os vícios da Academia”. Ela vai além do prêmio, analisa a atual crise do cinema e termina de maneira brilhante. Ela conseguiu me lembrar por que amo tanto cinema.

Isabela Boscov, “Miopia, preconceito, falta de curiosidade: os vícios do Oscar”, 13 fev. 2022

Durante a tormenta

Cinema

Duas tempestades separadas por exatos 25 anos: a nova moradora de uma casa encontra o seu antigo morador por meio de uma fita cassete. Ela o salva de morrer atropelado no passado e assim muda o curso de duas histórias, a dele e a sua. Agora ela corre contra o tempo para reencontrar a própria filha.

Parece um mote comum, mas deu origem a um belo filme: uma história bem contada e um final de enternecer o coração.

O trio principal é conhecido por quem gosta de obras espanholas e argentinas: Adriana Ugarte, do filme Julieta (2016) e da série O tempo entre costuras (2013-2014); Álvaro Morte, da série La casa de papel (2017-2021); e Chino Darín, do filme Uma noite de 12 anos (2018).

Durante a tormenta (2018) é dirigido por Oriol Paulo, o mesmo diretor do ótimo Um contratempo (2016). Ambos estão disponíveis na Netflix.


Trailer de Durante a tormenta (2018), Oriol Paulo.

Cafarnaum

Cinema

Desde a adolescência, eu escolho um filme ou o episódio especial de alguma série para assistir no dia do meu aniversário. Antes eu ia à locadora, hoje eu passeio pelas plataformas de streaming.

Fiz aniversário mês passado e o meu escolhido da vez foi Cafarnaum (2018), dirigido pela Nadine Labaki. O filme conta a história do menino Zain, que resolve processar os pais por ter nascido.

A sua decisão não é aleatória, ele sofre violência constantemente. Isso não tem a ver com a pobreza da família, temos uma outra história semelhante como contraponto. Sim, as necessidades básicas de uma criança passam diretamente pelas condições financeiras, mas cuidado, amor, afeto e segurança também são a base da formação de qualquer criança.

O filme é triste, mas carrega uma beleza singular. A força motriz do filme é o protagonista e a cena final é uma delicadeza. Difícil não chorar.

Cafarnaum (2018) está disponível na Amazon Prime.

Trailer legendado do filme Cafarnaum (2018), Nadine Labaki.